MEXICO CITY – A celebração dos dois anos de presidência do México de Andrés Manuel López Obrador começou com uma pequena mudança de ritmo. O presidente saltou a habitual mañanera, a sua conferência de imprensa diária de manhã cedo, e em vez disso dirigiu-se à nação para cumprir 97% das suas promessas de campanha. Mas um item correu mal.
Embora tenha prometido desmilitarizar a segurança pública, durante seus dois anos no cargo o presidente López Obrador (amplamente conhecido como AMLO) expandiu os poderes das forças armadas mexicanas de uma forma sem precedentes, além das tarefas de segurança nacional. A recente libertação do General Salvador Cienfuegos, ex-chefe do Ministério da Defesa do México (SEDENA), de uma prisão norte-americana, por razões de relações exteriores, diz-nos algo sobre o novo papel dos militares no governo mexicano.
Raramente os oficiais de justiça norte-americanos concordam em retirar as acusações tão prontamente. Cienfuegos tinha-se encontrado no lado errado das acusações bem documentadas de tráfico de drogas e lavagem de dinheiro. Mas colocar o general em julgamento nos Estados Unidos teria dado uma luz desconfortável aos militares mexicanos, lançando suspeitas sobre uma instituição que se tornou um elemento central da estratégia do governo.
O primeiro evento emblemático do que estava por vir para as forças armadas veio durante o primeiro ano de governo da AMLO com a criação da Guarda Nacional Mexicana. Apesar de ser constitucionalmente uma força de segurança controlada por civis, a guarda é controlada por um comando operacional militar, fontes recrutas principalmente das forças armadas, usa armas militares e treinamento, e tem membros acusados de crimes levados para prisões militares e não civis (isto, apesar de manter seu próprio quadro disciplinar). Quando seis membros da Guarda Nacional foram presos por uso indevido de força letal durante um protesto na barragem de Boquilla, em Chihuahua, em Outubro, por exemplo, foram transferidos para uma prisão militar em Sinaloa em vez de serem investigados e levados perante um juiz civil.
Como instituição, o guarda detém uma quantidade preocupante de poder, mantendo 44 atribuições de palavras vagas que vão desde “prevenção de crimes” e “interceptação de comunicações” até “detenção de migrantes e inspeção de seus documentos” e “participação em operações conjuntas”. O ato de concentrar essas responsabilidades sob um único teto é, por si só, preocupante. Entregá-las aos militares, um órgão que não adere às regras de transparência ou mesmo respeita a jurisdição civil quando um membro de suas fileiras tira a vida de um civil, é motivo de preocupação ainda maior.
Em maio de 2020, a AMLO decretou abruptamente que as forças armadas estariam “permanentemente disponíveis para realizar tarefas de segurança pública”, estendendo efetivamente seus poderes além da segurança nacional e para a esfera doméstica. Sem prever mecanismos claros de regulação ou auditoria, o decreto autoriza o Exército e a Marinha a realizar detenções, apreender bens, preservar cenas de crime e inspecionar a entrada e saída de pessoas do país. A fiscalização das forças armadas é deixada aos órgãos internos dessas instituições – ou seja, às autoridades militares não sujeitas às leis de transparência. O decreto não estabelece objetivos claros para o destacamento e omite qualquer linguagem que subordine as forças armadas às autoridades civis no desempenho de tarefas de segurança pública, conforme exigido pela Constituição do México e pelo direito internacional. Embora incluídos no título do documento, estes princípios não aparecem em lugar algum no corpo do texto. O número de militares envolvidos em operações domésticas, seja através da guarda ou operando através do decreto, é assustador. De acordo com dados do gabinete do presidente, em outubro de 2020, 214.735 membros das forças armadas realizaram tarefas de segurança pública.
Os poderes dos militares, no entanto, expandiram-se muito além das tarefas de segurança pública para áreas de governança. A administração da AMLO concedeu-lhes poderes sobre as alfândegas, vias fluviais, aeroportos, rodovias, programas de saúde e construção de infra-estruturas. O Programa Sembrando Vida, por exemplo, um programa de assistência às comunidades rurais, é agora gerido pelas forças armadas. Os militares agora têm o poder de distribuir medicamentos e vacinas, atender aos pacientes da COVID-19 e distribuir livros didáticos. Enquanto isso, surgiram em todo o país escolas de ensino médio controladas pelos militares; SEDENA administra pelo menos 22 escolas de ensino médio em 11 estados. Os militares chegaram mesmo a ter uma mão nos esforços de reflorestamento.
A tendência atual deve ser entendida como dois processos paralelos e simultâneos, o da militarização (a expansão dos militares em tarefas de segurança pública) e o militarismo (a incursão dos militares na governança). A resposta do governo mexicano à prisão do general Cienfuegos demonstra que o alcance das forças armadas se estendeu até mesmo para o âmbito da política externa. Enquanto o processo de militarização mostra a incapacidade do Estado mexicano de deter o crime através dos canais constitucionais regulares, o militarismo alimenta o autoritarismo, dificulta a transparência e retira o controle civil sobre as instituições militares. É a viabilidade democrática do Estado mexicano que está em risco.
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Pérez Correa é pesquisador e professor de direito penal no Centro de Pesquisa e Ensino de Economia (CIDE) e membro da diretoria do Programa Global de Políticas sobre Drogas (@cataperezcorrea)
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